quinta-feira, 26 de novembro de 2015

As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental


As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental. Principio, como o faz Alberto Mussa em seu último romance, com uma frase que, a rigor, deveria ser a conclusão desta crônica. Mas não faz mal. O sujeito das quintas, que não se deve confundir com um sujeito de quinta, tem dessas coisas. Enquanto todo mundo vive a expectativa do dia seguinte, ele não sabe, não pode e nem tampouco quer esperar o derradeiro parágrafo.

Logo eu, que nasci num sábado de carnaval, fui adorar a quinta-feira. Ando desconfiado de que toda essa inclinação possa ter a ver com o orixá que me guia, o que me foi revelado numa curimba há alguns anos lá pelas bandas de Campo Grande. Sabem como é, né: vida de ateu não praticante não é moleza, não.

Não que eu desconsidere os demais dias da semana. Não é isso. Mas eu sempre achei que a quinta-feira, especialmente a quinta, era o meu dia. Ou pelo menos desde os tempos de faculdade, nem tão longínquos assim. Podia até tomar umas num dia ou outro, escolhidos aleatoriamente conforme o calor, a vontade ou as duas coisas juntas. Não vou negar. Mas quinta-feira era diferente. Era dia do meu ritual: Bar da Frente, Cintra e biscoito Torcida, que eu não fujo das derrotas do passado, não senhores! Copo era - e continua sendo - americano, por favor! Os amigos chegavam depois, bem depois, mas chegavam. Como que por telepatia.

Mas vamos às razões, afinal de contas todo mundo tem as suas. Nas quintas, há um quê de compostura no ar. Não diante da vida, mas da morte. Há mais dignidade, portanto, numa quinta-feira. Reparem só os bares, onde nas quintas-feiras os seres flertam abertamente com o acaso, desafiam-no na purrinha e, ainda por cima, dão uma bela de uma borrada na assepsia produtiva da semana, que fica em aberto, maculada. Os da quinta, em resumo, não suportam redenções enlatadas e debocham dos que assim procedem. Por essas e outras, e sobretudo nos tempos que correm, há que se ter muito respeito pelo sujeito que chega de ressaca no trabalho numa sexta-feira. Vejam: matar o batente não adiantaria de nada, ainda que o corpo suplique. É preciso exibir com orgulho a ressaca para o povo das sextas.

Já os bares do dia seguinte se enchem de gente excessivamente frívola e monótona. Esses mesmos, que entornam o caldo na sexta, e esperam ansiosamente por isso, para poderem recolher - enquanto recolhem-se - calmamente toda a sujeira no sábado e preservar, assim, a ordem das coisas. Tudo está no seu lugar, graças a deus!, ainda que a cabeça esteja zureta.

Não, não. Obrigado, mas não. As sextas que me desculpem, mas quinta-feira é fundamental. Anotem aí: estejam todos convidados pro meu dia. Costumo celebrá-lo aqui mesmo, no BF, microcosmo do centro do Rio, meu canto mais recente e pra onde voltei depois de uns bordejos na Zona Oeste. Mas a quinta-feira continua a mesma. E minha. É só chegar.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Isabel que não foi princesa

Cinquenta anos depois que Isabel, a princesa, assinou a Lei Áurea, nascia, na cidade de Niterói, Isabel Souza Lima. É, na verdade, o que consta em seu registro de nascimento. Porque essa Isabel de que trato aqui costumava comemorar seu aniversário em outra data, dizendo a todos ter nascido a 28 de novembro, mas de que ano ninguém sabe ao certo. Muito menos ela.

Isabel fazia parte da extensa prole do casal Malvino Alves de Souza e Adelia Costa Souza. Ele pedreiro, ela lavadeira. Todos, pais, filhos e irmãos, negros. Como a imensa maioria das meninas pobres e negras de seu tempo, Isabel teve uma infância dura. Ainda criança, precisou ajudar sua mãe com a entrega das roupas. E foi assim que acabou passando à guarda de outra família, que a ela se afeiçoou e tomou para si a responsabilidade de criá-la.

Sua educação foi primária e, na adolescência, foi trabalhar na fábrica de fósforos Fiat Lux, no bairro operário do Vila Lage, em São Gonçalo. Mas seu conhecimento vinha mesmo era do tete-a-tete com a vida, que a ensinou em algum momento, provavelmente muito cedo, que para sobreviver era preciso imaginar-se num carnaval, com toda a sua euforia melancólica de alegorias, máscaras, confetes, serpentina e lança-perfume.

E Isabel brincou. E nessa brincadeira conheceu Betinho, negro garboso que na verdade se chamava Beethoven Silva Lima, num baile da Sociedade Carnavalesca Mimoso Manacá. Casaram-se em 1959, quando ela contava, portanto, com 18 ou 19 anos de idade. Logo vieram os filhos, ou melhor, as filhas. Duas. Ligia e Leila.

Isabel foi forte, mas não foi rude. Serviu à família e segurou as pontas quando Betinho, metido a malandro, aprontava das suas. E não foram poucas. As filhas, criou-as como pôde e a partir de sua própria experiência. Escola, uniforme, cabelo alisado na marra. Por força das circunstâncias, acabou por criar também os três netos, Rafael, Larissa e Gabriel. Todos devidamente rezados com o cú virado pra lua e levados com jujubas numa mão e um chinelo ameaçador na outra, só pra garantir.

Minha avó morreu quando eu tinha 14 anos. Nasceu livre mas não pôde se libertar de todo. E talvez soubesse disso. Mas que brincou, brincou. Gostava de dançar. Arrumava-se toda. Tomava lá a sua cervejinha e fumava escondida no quintal. E ria. E gargalhava. Não se sabe se foi feliz. É que, no carnaval da vida, borram-se os contornos que delimitam o íntimo e o superficial. E vó Isabel, que não foi princesa, adorava carnaval.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Carioquice

Há bastante tempo recai sobre o Rio um quebranto que nem mesmo as incontáveis entidades que por aqui batem ponto têm conseguido desfazer. Sua origem - como é da natureza dos quebrantos - é mítica e, como não manjo nada de mitologia, deixo-a para os iniciados de plantão. Só sei que, por algum vacilo junto aos deuses - sempre o vacilo! - o carioca parece irremediavelmente condenado a ter um problema medonho com sua própria identidade.

Trocando em miúdos é o seguinte: como a gente foi capital durante muito tempo, não temos nenhuma tradição de nos pensar regionalmente. Quer-se dizer: ou bem o carioca acaba girando em torno de si mesmo ou inventa - e acredita na própria invenção - que é o espelho do país. Na verdade, as duas coisas não apenas andam juntas, como se entrelaçam e dão origem a chamada carioquice, que voltou à moda por conta dos 450. Recentemente surgiram até especialistas no assunto - vejam só vocês - nos eventos os mais pomposos possíveis. "Fulano de Tal, profundo conhecedor da carioquice".

Previnam-se, caríssimos(as) passageiros(as), pois a carioquice é uma enfermidade espiritual, tanto mais séria na medida em que encontra ecos oficiais e cega o carioca quanto a sua própria experiência na cidade até esvaziá-la por completo, tornando-o um mero fantasma de si mesmo. Não por acaso o nosso prefeitóide, que de vez em quando circula pelas bandas da Portela e do Renascença - de chapeuzinho de malandro na cabeça e tudo! -, dá as caras no Cachambeer, toma banho no chuveirão de Madureira, dirige táxi e tudo o mais, parece ter feito da carioquice a sua meta síntese. "Viva a carioquice", diz o slogan da prefeitura, e nessa brincadeira as múltiplas potencialidades da cidade vão sendo aprisionadas na desgastada, porém ainda viva e perigosa, imagem de cidade maravilhosa, agora a partir do "Porto Maravilha".[1] 

Agarremo-nos aos nossos protetores. São Manuel Antônio de Almeida, São Lima Barreto, São João do Rio, São Marques Rebelo, vigiai e protegei! São Noel Rosa, São Ismael Silva, São Pixinguinha, Donga João da Baiana e Clementina, que embora de Jesus invoca forças muito mais pertinentes ao caso em questão. Convoquemos também Aldir Blanc! Não se esqueçam do Melodia, pra prender bem nosso cansaço. E seguremos as pontas, porque, vocês sabem, quando tem muita visita o senhorio capricha nas aparências. E ano que vem o bicho pega.




[1] Aliás, vocês já repararam que se, de um lado, a repaginada Praça Mauá nos chama para a Baía de Guanabara, por outro ela meio que volta a dar sentido à perspectiva da Avenida Rio Branco?!