quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Carioquice

Há bastante tempo recai sobre o Rio um quebranto que nem mesmo as incontáveis entidades que por aqui batem ponto têm conseguido desfazer. Sua origem - como é da natureza dos quebrantos - é mítica e, como não manjo nada de mitologia, deixo-a para os iniciados de plantão. Só sei que, por algum vacilo junto aos deuses - sempre o vacilo! - o carioca parece irremediavelmente condenado a ter um problema medonho com sua própria identidade.

Trocando em miúdos é o seguinte: como a gente foi capital durante muito tempo, não temos nenhuma tradição de nos pensar regionalmente. Quer-se dizer: ou bem o carioca acaba girando em torno de si mesmo ou inventa - e acredita na própria invenção - que é o espelho do país. Na verdade, as duas coisas não apenas andam juntas, como se entrelaçam e dão origem a chamada carioquice, que voltou à moda por conta dos 450. Recentemente surgiram até especialistas no assunto - vejam só vocês - nos eventos os mais pomposos possíveis. "Fulano de Tal, profundo conhecedor da carioquice".

Previnam-se, caríssimos(as) passageiros(as), pois a carioquice é uma enfermidade espiritual, tanto mais séria na medida em que encontra ecos oficiais e cega o carioca quanto a sua própria experiência na cidade até esvaziá-la por completo, tornando-o um mero fantasma de si mesmo. Não por acaso o nosso prefeitóide, que de vez em quando circula pelas bandas da Portela e do Renascença - de chapeuzinho de malandro na cabeça e tudo! -, dá as caras no Cachambeer, toma banho no chuveirão de Madureira, dirige táxi e tudo o mais, parece ter feito da carioquice a sua meta síntese. "Viva a carioquice", diz o slogan da prefeitura, e nessa brincadeira as múltiplas potencialidades da cidade vão sendo aprisionadas na desgastada, porém ainda viva e perigosa, imagem de cidade maravilhosa, agora a partir do "Porto Maravilha".[1] 

Agarremo-nos aos nossos protetores. São Manuel Antônio de Almeida, São Lima Barreto, São João do Rio, São Marques Rebelo, vigiai e protegei! São Noel Rosa, São Ismael Silva, São Pixinguinha, Donga João da Baiana e Clementina, que embora de Jesus invoca forças muito mais pertinentes ao caso em questão. Convoquemos também Aldir Blanc! Não se esqueçam do Melodia, pra prender bem nosso cansaço. E seguremos as pontas, porque, vocês sabem, quando tem muita visita o senhorio capricha nas aparências. E ano que vem o bicho pega.




[1] Aliás, vocês já repararam que se, de um lado, a repaginada Praça Mauá nos chama para a Baía de Guanabara, por outro ela meio que volta a dar sentido à perspectiva da Avenida Rio Branco?!

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